No chuveiro 11:25

Como eu disse ontem, eu vou postar a estória: No chuveiro, de Andy Grifitths.

Estou no chuveiro. Cantando. E não só porque o eco faz minha voz soa tão legal. Estou cantando porque estou muito feliz.Desde que tenho idade suficiente para tomar banhos de chuveiro, venho tentando encontrar um meio de encher o boxe com água. Se eu colocar uma esponja no ralo, consigo que a água chegue até os meus tornozelos, mas ela sempre acaba vazando pelas frestas da porta.Mas acho que finalmente encontrei a solução: a pistola de silicone do papai.Fechei o ralo.Selei as portas do boxe.Tampei até todas as rachaduras entre os azulejos.O cubículo está totalmente impermeável e a água já está nos meus joelhos. E o melhor é que tenho a noite toda para me divertir. Mamãe e papai convidaram o Sr. E a Sra. Bainbrigde para jantar. Eles vão estar tão ocupados ouvindo o Sr. Bainbrigde falando de si mesmo que não vão ter tempo de se preocupar com o que eu estou fazendo.Escuto alguém bater na porta.
― Você já está terminando, Andy?
É a Jen.
― Não ― eu digo. ― Acho que ainda vou demorar um pouco.
― Não dá para se apressar? ― ela grita.
― Mas você já tomou banho hoje de manhã ― eu grito.
― Eu vou sair. Preciso do banheiro.
― Está certo. Vou sair num minuto ― garanto. Sempre digo isso. É a verdade. Mais ou menos. Vou sair num minuto, só não digo qual minuto vai ser.
O cubículo está se enchendo de um vapor espesso e branco. Bem do jeito que gosto. Pai sempre diz o quanto é importante ligar o ventilador quando estamos no banho, mas eu não vejo sentido nisso. Um chuveiro sem vapor não tem graça. É o mesmo que ficar parado na chuva.O meu pato de borracha bate nas minhas pernas. Eu o apanho.
― É isso aí. Só eu e você... Indo para onde nenhum menino, ou pato de borracha, esteve antes. Ele ergue o bico numa espécie de sorriso. Deve estar tão entusiasmado quanto eu. Vamos encarar os fatos: não pode haver muita animação na vida de um pato de borracha. A não ser pelo fato de que ele pode ver todo mundo sem roupa.Jen começa a bater na porta outra vez.
― Andy! Por favoooor!
― Tá bom! ― grito. ― Vou sair num minuto.
― Você disse isso um minuto atrás.
― Estou lavando os meus cabelos.
― Mas você está aí há pelo menos meia hora. E você não tem tanto cabelo assim.
― Estou usando um xampu novo, tenho que lavar um fio de cada vez.
― Andy!
A água já está quase no meu umbigo. Só falta uma coisa. Espuma!
Pego o frasco de espuma de banho e meço uma tampa. Derramo o conteúdo na água. Algumas bolhas, mas não o suficiente. Adiciono outra tampa. E outra e mais outra. Mais uma para não errar. Uma última para dar sorte. Continuo colocando a espuma até esvaziar o frasco. As bolhas sobem acima da minha cabeça. Legal. É como ser devorado por um enorme fungo branco. Bem, não que ser devorado por um enorme fungo branco seja legal. Na verdade, provavelmente seria muito chato... Mas você sabe o que eu quero dizer.
Jen está gritando.
― Andy, se você não sair agora mesmo, vai se arrepender.
Tenho de admitir que Jen é persistente, mas vou dar um jeito nela. Vou usar o velho golpe do “o que foi que você disse?”
― O quê? ― grito de volta. ― O que foi que você disse?
― Eu disse que você vai se arrepender!
― O quê? Não escuto nada!
― Eu disse para você sair do chuveiro!
― Como?
Nenhuma resposta. Essa eu ganhei.
Aaaaiiiiii!A água ficou muito quente.
Fervendo! Jen deve ter apertado a descarga. Isso é péssimo. Essa eu perdi. Pulo para trás e encosto-me na parede do boxe. A água quente espirra no meu rosto, no meu peito, nos meus braços. Agarro a torneira de água fria e abro ao máximo. A água quente desaparece. Agora, a água está gelada. Tenho que fechas as duas torneiras e começar de novo. Que chato. Não é fácil ser um pioneiro. Fecho a torneira de água quente, mas a de água fria não se move. Agarro a torneira com as duas mãos. Tento girá-la no sentido horário, mas ela emperrou. Nem mesmo a minha superforça é capaz de movê-la.
A pistola de silicone está pendurada no cano do chuveiro. Pego-a e começo a bater na torneira com ela. Isso deve soltá-la. Mas a torneira se despedaça. Os pedaços desaparecem na água cheia de sabonete. Olho para a fina haste de metal que sai da parede. E a água continua jorrando.
Ajoelho-me e aperto os dentes contra o cano. Não adianta. Parece que está enferrujado. É mais fácil os meus dentes se quebrarem do que aquilo se mexer. Não há mais vapor. As bolhas estão se desfazendo.
A água gelada está quase chegando ao meu peito. Talvez não tenha sido uma ideia tão boa assim.
Hora de pular fora.
Respiro fundo e mergulho para o fundo do boxe. Tento encontrar a tampa do ralo. Preciso tirar o silicone antes que o boxe se encha totalmente. Mas não consigo encontrá-la. Fiz um trabalho muito bem-feito. Não há nada além de uma placa dura de silicone onde a tampa devia estar. Não consigo encontrar a ponta.
Não consigo enfiar a unha por baixo para levantá-la. É em momentos como este que eu gostaria de não ter o hábito de roer as unhas. Mas, por outro lado, são momentos como este que me fazem roer as unhas.
Levanto-me em busca de ar. A água já chegou ao meu pescoço. Agarro o puxador da porta e tento abri-la, mas pus ainda mais silicone nas portas do que no ralo. Se você algum dia precisar vedar alguma coisa muito bem, recomendo a pistola de silicone do papai. Esse negócio cola para sempre.Vou ter que quebrar a porta.Penso em usar a pistola. Ela quebrou a torneira facilmente, portanto a porta não deverá representar um problema.
Golpeio o vidro com o cabo da pistola. Ela ricocheteia. Bato novamente, desta vez com mais força. A pistola parte-se em dois. Que sorte a minha! O vidro da porta do boxe é reforçado. Inquebrável.
Estou tremendo. E não é só de frio. Estou apavorado.Começo a bater na porta com o pato.
― SOCORRO! ESTOU ME AFOGANDO! SOCORRO!
― Depois de tanto tempo aí dentro, isso não é surpresa ― Jen grita do lado de fora.
― Jen, não estou brincando. Ajude-me!
― O que você disse? ― ela pergunta. ― Não estou ouvindo.
― É verdade ― eu grito. ― Eu me “siliconei” aqui dentro!
― O quê?
Ela vence outra vez.
Estou sendo coberto pela água. A minha cabeça está muito perto do alto do boxe. E, se eu puder beber ainda mais depressa, até posso conseguir sair vivo dessa. Para falar a verdade, o gosto da água não é tão ruim ― faz só três dias que tomei meu último banho. Continuo engolindo. E engolindo. E engolindo. E engolindo. Aaai!Não acredito!Preciso ir ao banheiro. Mas isso é possível!Estou disposto a tomar água suja do chuveiro, mas não vou beber isso. Preciso aguentar firme. Mas isso também é impossível. Estou a ponto de explodir.
A minha cabeça está batendo de encontro ao teto do boxe.
Está cada vez mais difícil respirar.
Ouço mais batidas na porta, mas elas parecem vir de um lugar muito distante.
― Vou contar para o papai ― Jen ameaça com uma voz longínqua. ― É isso que você quer, é?
― Sim, Jen ― eu grito. ― Sim, por favor, depressa!
Silêncio total. Minha vida passa diante de meus olhos.
Vejo-me assoprando um apito de som agudo, enquanto mamãe está tentando falar ao telefone; esvaziando os pneus do carro de papai; escondendo uma cobra de borracha na cama de Jen. Isso foi tudo o que fiz na vida? Irritar as pessoas? Será que não fiz nada de útil... De bom?
Não.
Não consigo lembrar nada. Exceto pela solução que encontrei para encher o boxe de água. Talvez eu morra, mas pelo menos será a morte de um herói. Futuras gerações irão me agradecer ao flutuarem em seus boxes selados de silicone.
Ai!Algo está apertando o alto da minha cabeça.
Olho para cima. O ventilador! Tinha me esquecido completamente dele. Ele não é muito grande, mas é melhor do que nada. Se eu conseguir tirar a grade, talvez possa escapar pelo buraco e ir até o telhado. Com os dedos, procuro a borda da grade e puxo. Ela sai com facilidade. Estendo a mão para a esquadria, seguro o ventilador e balanço para frente e para trás. Ele cede um pouquinho e começo a dar tudo de mim.
Por fim, os parafusos que o prendem começam a se soltar. Empurro os braços e a cabeça para dentro do duto, chutando feito louco para ter impulso necessário e subir.
A abertura é menor do que eu imaginei. Solto todo o ar dos pulmões para diminuir a circunferência do peito e caber na passagem ― não que houvesse muito ar dentro deles, mas parece que a manobra funciona.
Finalmente consigo passar!
Estou deitado sobre a bateria de energia solar no teto de nossa casa. As fibras de vidro pinicam minha pele, mas não me queixo. Assim está muito melhor do que antes. Olho para o buraco de onde saí. Parece um daqueles buracos de pesca que os esquimós cortam no gelo. Mas não há peixes, apenas o meu pato de borracha. Estendo a mão e o pego. Estamos nisso juntos. Não posso simplesmente abandoná-lo.
Depois de recuperar o fôlego, olho ao meu redor. Sei que há um alçapão no teto da cozinha, só preciso encontrá-lo, descer na cozinha e me esgueirar pelo corredor até o meu quarto. Lá, poderei vestir o pijama e ir para a cama. Assim, escapo de dar um monte de explicações chatas. E se realmente tiver sorte, Jen vai levar a culpa.
Tenho que andar depressa. Começo a me arrastar pela viga do telhado na direção da cozinha. Levo o pato numa das mãos e uso a outra para sentir o caminho.
De repente, sinto uma dor água do dedão. Puxo a mão para trás depressa e quase perco o equilíbrio. Jogo o pato para longe para poder agarrar a vigia com a outra mão.Verifico o dedão. Uma lasca enorme está espetada nele. Tiro-a com os dentes. Aii! Sacudo a mãos algumas vezes e procuro o pato. Ele foi parar bem no meio de uma área cheira de baterias de energia solar sem sustentação. Fico tentado a deixá-lo ali, mas não seria correto. Ele ficou comigo o tempo todo. Não posso abandoná-lo agora.
Estendo a mão, mas ele está muito longe. Vou ter de me arrastar até ele. Sei que não se deve pisar em partes do teto que não tenham sustentação, mas acho que não vai haver problema. Sou leve e não tenho roupa nenhuma no corpo, o que me deixaria mais pesado.
Subo com cuidado nas baterias e começo a me mover lentamente para o centro. Mais um metro e chego lá. Pego o pato e o trago para perto o meu rosto.
― Só você e eu ― digo.
O pato solta um grunhido. Isto é estranho. Não sabia que patos de borracha falavam.
Ai, ai... O grunhido não vem do pato, vem de algum lugar debaixo do meu corpo. O teto está cedendo. Tento agarrar-me à viga do telhado, mas não a alcanço. O teto começa a cair.
Só sei que logo depois estou deitado de pernas abertas no meio da mesa de jantar: minha queda foi causada pela quebra de uma bateria de energia.
Assim que a poeira de gesso do teto assenta, vejo Sr. e a Sra. Bainbrigde e meus pais olhando para mim.Jen está parada ao lado de papai, a toalha de banho dobrada sobre o ombro. Ela está de costas para mim e tão ocupada se queixando para ele que parece nem notar o que aconteceu.
― ...eu já pedi milhões de vezes, mas ele simplesmente não sai... ― ela está dizendo.
― Ah, meu Deus ― diz mamãe.
― Ah, meu santo ― diz a Sra. Bainbrigde. Pela primeira vez na vida, o Sr Bainbrigde está sem fala.
― Ah, não! ― diz meu pai, balançando a cabeça. ― Não, não!
― Ah, sim ― retruca Jen. ― E digo mais uma coisa...
Papai acena em minha direção. Jen pára, vira-se e olha.
Cubro-me com o pato de borracha, jogo as pernas para a beirada da mesa e me levanto.
― Com licença ― digo. ― Eu estava procurando a cozinha.
Ninguém fala nada. Ficam todos simplesmente me encarando, os rostos e as roupas brancos de pó de gesso. Dirijo-me para a porta o mais depressa que posso. Quando estou prestes a sair da sala, viro-me para Jen. Ela ainda está parada ali, os olhos arregalados.
― E então, o que você está esperando? ― pergunto. ― O chuveiro está livre!

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